Projetos de governos militares são investigados pela Comissão da
Verdade. Maior parte das mortes, em quatro frentes de construção de
rodovias, não foi registrada.
As investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) pela região
Amazônica indicam um verdadeiro genocídio de índios durante o período da
ditadura militar. Não há como falar em um número exato de mortos devido
à falta de registros. Os relatos colhidos, no entanto, apontam que
cerca de oito mil índios foram exterminados em pelo menos quatro frentes
de construção de estradas no meio da mata, projetos tocados com
prioridade pelos governos militares na década de 1970.
Os trabalhos da Comissão da Verdade miram os processos de construção e
o início do funcionamento das rodovias BR-230, conhecida como
Transamazônica; a BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, a BR-210,
conhecida com Perimetral Norte e a BR 163, que liga Cuiabá (MT) a
Santarém (PA).
Essas estradas fizeram parte do Plano Nacional de Integração (PIN),
instituído pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, em 16 de julho de
1970, e que previa que 100 quilômetros em cada lado das estradas a serem
construídas deveriam ser destinados à colonização. A intenção do
governo era assentar cerca de 500 mil pessoas em agrovilas que seriam
fundadas.
Transamazônica
A Transamazônica foi escolhida como prioridade e, por isso,
representou uma verdadeira tragédia para 29 grupos indígenas, dentre
eles, 11 etnias que viviam completamente isoladas. Documentos em poder
da Comissão da Verdade apontam, por exemplo, o extermínio quase que
total dos índios Jiahui e de boa parte dos Tenharim. O território dessas
duas etnias está localizado no sul do Estado do Amazonas, no município
de Humaitá.
O Ministério Público Federal no Amazonas também abriu um inquérito
para apurar as violações de direitos humanos cometidas contra esses
povos no período da ditadura militar. Os documentos indicam ainda que
indígenas sobreviventes acabaram envolvidos nas obras em regime de
escravidão.
Atualmente, a população Jiahui, de acordo com a Fundação Nacional do
Índio (Funai), não chega a 90 índios. Antes da construção da estrada,
eram mais de mil. Já os Tenharim somam hoje 700 pessoas. Eram mais de
dois mil antes da chegada das frentes de construção.
Matança
Entre as práticas de violência contra índios já identificadas estão
as “correrias”, expedições de matança de índios organizadas até o final
da década de 1970, principalmente no sul do Amazonas e no Acre. Essa
prática foi detalhada no primeiro relatório do Comitê Estadual da
Verdade do Amazonas, um documento de 92 páginas, ao qual o iG teve
acesso.
O relatório descreve a matança do povo Waimiri-Atroari, que habitava
até 1967 a região entre Manaus e o município de Caracaraí, em Roraima. A
região corresponde à parte norte do vale do rio Urubu e inclui os rios
Uatumã, Curiuaú, Camanaú, Alalaú, todos no Amazonas, além dos rios
Jauapery e Anauá, em todo Estado de Roraima, até a fronteira com a
Guiana. Esse povo foi diretamente impactado pela construção da BR-174.
“Muitos dos episódios de ‘correrias’ tiveram a participação direta de
agentes públicos”, aponta o relatório elaborado pelos coordenadores do
comitê local, Egydio Schwade e Wilson Braga Reis.
“Pais, mães e filhos mortos, aldeias destruídas pelo fogo e por
bombas. Gente resistindo e famílias correndo pelos varadouros à procura
de refúgio em aldeia amiga. A floresta rasgada e os rios ocupados por
gente agressiva e inimiga. Esta foi a geografia política e social
vivenciada pelo povo Kiña desde o inicio da construção da BR-174 em 1967
até sua inauguração em 1977”, descreve no documento. O termo “Kiña” é
uma outra denominação para os Waimiri-Atroari.
O relatório também informa que, entre os povos mais duramente
atacados em “correrias”, estão os Kaxinawa e os Madiha no Acre, além do
povo Juma, no sul do Amazonas.
Lista de mortos
O relatório também pede mais investigação sobre o desaparecimento dos
índios Piriutiti e sobre o que ocorreu com outras etnias durante a
execução das grandes obras do governo militar. “Documentos apontam
também para o genocídio do grupo Piriutiti, na mesma região, que merece
uma investigação mais específica”, diz o texto.
Para Schwade, a investigação da Comissão Nacional da Verdade sobre a
violência sofrida por índios terá que apontar o que ocorreu com os Cinta
Larga e Suruí, na região dos rios Aripuanã e Rooswelt, entre Rondônia e
Mato Grosso; os Krenhakarore do rio Peixoto de Azevedo, na rodovia
Cuiabá-Santarém (conhecidos como Índios Gigantes); os Kanê ou
Beiços-de-Pau do Rio Arinos no Mato Grosso; os Avá-Canoeiro em Goiás;
Parakanã e Arara no Pará, entre outros, em função dos projetos políticos
e econômicos da Ditadura.
Restrição de informação
De acordo com Schwade, apesar de o episódio ser relativamente recente
e ter ocorrido bem próximo à capital amazonense, a cerca de 200
quilômetros, as pessoas sabem menos dessa matança do que sobre os
massacres acontecidos aos mesmos índios há 150 anos. “Apesar da farta
documentação existente, que comprova o exercício de uma política
genocida, instalou-se junto ao povo Wamiri-Atroari um programa de
controle da informação”, aponta. Os militares, de acordo Schwade,
mantiveram afastados do local indigenistas, cientistas e jornalistas.
“Não houve acesso, a não ser dos que tinham vinculação com os interesses
empresariais instalados no território indígena”, denunciou.
O conluio de agentes públicos com empresários e fazendeiros ligados a
lideranças políticas locais é outro ponto observado por técnicos da
Comissão da Verdade que estiveram na Amazônia para colher informações.
Onde as frentes para a abertura de estradas chegaram, também chegaram os
fazendeiros, que se instalaram demarcando latifúndios em terras antes
pertencentes aos índios.
Yanomamis
A construção da rodovia Perimetral Norte também é objeto de estudo da
Comissão da Verdade. A obra representou um desastre para o povo
Yanomami e estima-se que pelo menos dois mil índios dessa etnia tenham
sido exterminados no período. Uma avaliação da Comissão da Verdade
indica que o desastre só não foi maior porque o governo militar não
chegou a concluir a obra. Com isso, muitas aldeias acabaram preservadas,
já que o projeto da estrada, que cortava inteiramente o território
Yanomami, não foi executado na integralidade.
O traçado planejado para a rodovia passava pelos Estados de Amazonas,
Pará, Amapá e Roraima. A proposta era cortar toda a Amazônia
brasileira, desde o Amapá até a fronteira colombiana no Estado do
Amazonas. Até hoje, somente um trecho, em Roraima, com pouco mais de 400
quilômetros, e outro no Amapá, com cerca de 100 quilômetros, foram
construídos.
Embora o trecho executado seja considerado relativamente pequeno, a
construção foi capaz de exterminar, quase que por completo, os índios
Yawarip, um subgrupo Yanomami, na década de 1970. Mais tarde, a
publicidade dada no governo militar ao grande potencial mineral do
território Yanomami desencadeou a instalação de garimpos ilegais nas
terras dos índios, o que provocou mais destruição.
Prazo
A avaliação preliminar da Comissão da Verdade é de que os relatos
sobre a violência indígenas são muitos, mas ainda pulverizados. De
acordo com técnicos, o desafio da comissão para finalizar um texto capaz
de promover consequências jurídicas está em estabelecer uma narrativa
dos fatos. Diante desse desafio, os conselheiros da Comissão da Verdade
estudam pedir novamente um prazo à presidente Dilma Rousseff para a
apresentação do relatório final, pelo menos em relação ao tema indígena.
As três estradas estão sendo usadas como eixos da investigação, no
entanto, os técnicos e conselheiros querem ainda contemplar no documento
aspectos importantes como a militarização, na época, dos órgãos
encarregados de proteger os índios. No caso, esse orgão seria a Fundação
Nacional do Índio (Funai).
Outro ponto importante do texto será o de estabelecer a cadeia de
comando. Como os militares alegam que muitos documentos foram
destruídos, fica quase impossível para comissão indicar de quem partiram
as ordens para os ataques. A ideia é, nesse caso, que o texto indique
quem ocupava cargos importantes na hierarquia militar em determinados
Estados, municípios ou frentes de trabalho e que, pela rígida hierarquia
militar, teria que ordenar ou consentir os ataques.
Por: Luciana Lima
Fonte: IG
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