Nesta semana, a ANP realizará um leilão de direitos de exploração de
240 blocos do território nacional, incluindo áreas amazônicas
Crianças
e jovens da aldeia Soles, comunidade matsé do lado brasileiro do Rio
Javari. Lideranças indígenas afirmam que as notícias da exploração de
gás não chegaram lá (Foto: Fellipe Abreu)
A rotina começa com o nascer do sol no Maronal, uma das comunidades
indígenas mais isoladas do Estado do Amazonas. Não há luz elétrica. Nem
estrada. Os moradores dormem e acordam cedo. As crianças correm e
brincam peladas no rio. As meninas escondem o rosto, tímidas ao ver um
desconhecido. As mulheres vêm das roças trazendo algum alimento. Os pais
de família, que não têm muita carne guardada, voltam em grupo da
madrugada de caçada no meio da selva. O menu do dia é banana e mandioca
cozida de manhã, banana e mandioca assada com carne de macaco-prego no
almoço e carne de anta com mingau de banana no jantar.
A aldeia, com cerca de 300 habitantes da etnia indígena marubo, fica
no extremo sul do Estado, quase na divisa com o Acre. Para chegar aqui,
são sete dias de barco desde Tabatinga (na tríplice fronteira entre
Brasil, Colômbia e Peru). O local fica na segunda maior reserva indígena
do país, a do Vale do Javari. Além dos marubos, abriga comunidades
matsé, matis, canamari, culina, corubo e também de índios isolados –
tribos indígenas que, em pleno século XXI, permanecem sem contato com a
civilização. As distâncias são medidas em dias. Jornal não chega.
Televisão não tem. E rádio, só da Funai. As notícias demoram a chegar.
Uma delas pode mudar radicalmente a vida dos moradores locais.
Nos dias 28 e 29 de novembro, a Agência Nacional do Petróleo, Gás
Natural e Biocombustíveis (ANP) realizará um leilão de direitos de
exploração de 240 blocos do território nacional. Nove deles estão na
Bacia Sedimentar do Acre, que compreende os municípios de Cruzeiro do
Sul, Mâncio Lima, Porto Walter e Rodrigues Alves, no Acre; e Guajará e
Ipixuna, no Amazonas. Esses blocos amazônicos somam 2 milhões de
hectares (o equivalente a metade do Estado do Rio de Janeiro), situados
entre unidades de conservação e terras indígenas. O objetivo é abrir
áreas para exploração privada de gás de xisto na região.
O potencial desse gás ganhou importância mundial graças a novas
técnicas de extração, que tornaram os Estados Unidos quase
autossuficientes em energia. E incentivaram uma corrida global para a
exploração do xisto. A exploração é mais complicada que do gás natural
de petróleo. O gás de xisto não está solto em bolsões no subsolo, mas
impregnado no material rochoso. Para retirá-lo, é preciso primeiro furar
um poço até a camada de xisto, a quilômetros de profundidade. Lá, a
perfuração se ramifica horizontalmente, abrindo até dez túneis que podem
chegar a 3 quilômetros de extensão. As paredes desses túneis são
revestidas de concreto. Em seguida, explosivos promovem várias explosões
nesses túneis, para fracionar a rocha de xisto. Finalmente, é injetado
no poço um jato de alta pressão com uma mistura de água, areia e
produtos químicos, para liberar o gás. Esse sistema, chamado de
fraturamento hidráulico (em inglês, fracturing), é o mais eficiente.
A exploração na Amazônia traz riscos. As perfurações e as explosões
do poço podem gerar contaminação dos lençóis subterrâneos de água. A
produção exige grandes quantidades de água para injetar nos poços. A
água contaminada volta do poço e pode vazar, sujando os rios da região.
“A rocha impregnada de xisto também contém óleo”, diz o químico Jaílson
de Andrade, da Universidade Federal da Bahia e coordenador do Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia em Energia e Ambiente. “No caso de
algum vazamento, os rios podem ser afetados.” Boa parte dos peixes da
Amazônia tem respiração aérea. Precisa ir à superfície para captar
oxigênio. Um vazamento criaria uma película de óleo na superfície da
água, sufocaria os peixes e afetaria populações que dependem do rio.
Alguns questionam a falta de estudos prévios para autorizar a
exploração na região. “É precipitada a decisão da ANP de abrir os
leilões para a exploração de gás de xisto”, diz o físico José
Goldemberg, da USP. “Para transformar o gás em energia, precisaria ser
instalada uma termelétrica na região e também as linhas de transmissão.
Isso geraria mais impactos ambientais.”
Bruno Pereira, coordenador da Funai em Atalaia do Norte, diz que em
nenhum momento os indígenas foram procurados. “Eles não tiveram acesso
às informações sobre os empreendimentos e não foram consultados sobre os
possíveis impactos”, afirma. Segundo uma convenção da Organização
Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, os indígenas
devem ser ouvidos antes de grandes projetos que afetem suas terras.
“Isso não foi feito”, diz Pereira.
Procurada
por ÉPOCA, a ANP afirma que, antes de preparar a licitação, “houve a
devida manifestação positiva dos órgãos ambientais competentes” e que
“as exclusões de áreas recomendadas por eles foram atendidas”. Sobre as
terras indígenas, a ANP diz que seguiu as recomendações de um parecer
encomendado à Funai.
O Vale do Javari desperta interesses da indústria de energia desde as
décadas de 1970 e 1980, quando a Petrobras começou a fazer estudos
sísmicos para verificar o potencial da região. “Dava muito problema com
os índios”, diz Sidney Possuelo, da Funai. Possuelo, conhecido
internacionalmente pelo trabalho com índios isolados, conta que os
estudos da Petrobras eram feitos próximos das malocas onde viviam tribos
sem contato com a civilização. “Numa oportunidade, um grupo conhecido
como corubo (ou “caceteiros”) atacou técnicos que abriam uma clareira na
selva. Um funcionário da Petrobras e outro da Funai foram mortos a
golpes de bodurna, daí o apelido do grupo.” Para Possuelo, os estudos
tinham impacto ambiental. “Usavam lubrificantes à base de soda cáustica
para auxiliar nas perfurações, e os rejeitos eram jogados em piscinas
que, na época das chuvas, transbordavam para os rios.”
Se feita com cuidado e com respeito à população local, a atividade
petroleira traz benefícios para todos. Com uma produção de 41.500
barris de petróleo e de 10,2 milhões de metros cúbicos de gás natural
por dia, a Província Petrolífera de Urucu, da Petrobras, em Coari, a 650
quilômetros de Manaus, rende ao Estado do Amazonas a terceira posição
em produção de petróleo terrestre no país. Gera empregos e receita para
o município de Coari. A operação fica ilhada no meio da selva. Não há
estradas que liguem Urucu a nenhuma outra cidade, para evitar a
formação de núcleos urbanos. O petróleo segue de balsa para Manaus,
para evitar oleodutos com possíveis focos de vazamento na floresta.
Depois de perfurar os poços, a Petrobras replanta parte da floresta,
usando mudas de espécies nativas. Cuidados assim deveriam ser tomados
na exploração de gás no Vale do Javari.
Por: Felipe Abreu
Fonte: Revista Época